Semiótica
A comunicação humana e, por consequência, a nossa constituição enquanto seres sociais e históricos é baseada em linguagens. Não apenas a linguagem verbal, essa originada nos sons que se articulam do nosso aparelho fonador e veiculam conceitos, traduzidos visualmente em códigos alfabéticos.
Grande parte da transmissão de saberes e de formas de interpretação do mundo há tempos estão vinculados à linguagem verbal, mas na verdade nos comunicamos através de inúmeras outras linguagens não verbais que constituem nossos modos de expressão, de manifestação de sentidos e de representação no mundo.
A Semiótica é então, nas palavras de Santaella (1983, p. 13), “a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”. Para a autora, essa ciência se origina no cenário pós Revolução Industrial, tendo em vista justamente uma proliferação das linguagens e dos meios de informações.
Desse modo, a semiótica moderna teve três raízes principais: na União Soviética, sobretudo no cenário efervescente de movimentos científicos e artísticos após a revolução; na Europa Ocidental, com Saussure; e nos EUA, com Charles Sanders Peirce.

Charles Sanders Peirce (1839-1914)
Considerado um gênio multidisciplinar, foi químico, matemático, astrônomo e filósofo. Apesar disso, viveu à margem das universidades e do reconhecimento acadêmico, sendo redescoberto somente décadas após sua morte. Desde jovem, Peirce era fascinado pelos processos do pensamento e da linguagem. Ele chegou a afirmar que tudo o que estudou — de vinho à anatomia — era, para ele, estudo de Semiótica.
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Aqui, vamos focar especialmente na tradição americana. Como explica Santaella (1983), a Semiótica de Peirce se assenta sobre uma fundação filosófica, com base no seu entendimento sobre a Fenomenologia. Considerando experiência tudo que se força ao nosso reconhecimento, Peirce conclui que tudo aparece à nossa consciência em três propriedades:
É a categoria da qualidade imediata da experiência, anterior a qualquer relação ou interpretação. Trata-se do domínio da sensação bruta, daquilo que simplesmente é, sem depender de outra coisa para existir. O perfume que se percebe antes de saber de onde vem, o sentimento sem motivo aparente. É o plano da intuição sensível, do que é vivido de maneira direta, sem mediação. É o potencial daquilo que "poderia ser", antes que qualquer ação ou pensamento racional intervenha.
Então fica a dúvida: a Primeiridade (sentimento) e a Secundidade (reação), estariam condenadas a dominância da Terceiridade (interpretação)?
Como afirma Santaella (1983), Peirce explica que esses estados mentais não são rígidos, eles coexistem e se interpenetram. Mesmo imersos no fluxo racional da interpretação, somos atravessados por instantes de pura sensação ou impacto bruto com o real.
No entanto, toda forma de conhecimento e percepção é mediada por signos. Ou seja, para a nossa compreensão dos fenômenos precisamos desvelar significações. Dessa forma, precisamos operar o processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) em signos. Por isso, a Semiótica é também a ciência dos signos.
Para Peirce, o signo não existe isoladamente, ele é dinâmico e triádico: envolve a forma do signo em si, um objeto (aquilo que ele representa) e um interpretante (o efeito que ele produz na mente de quem o percebe).
O objeto pode ser imediato (no próprio signo) ou dinâmico (aquilo que o signo substitui), assim como o interpretante imediato consiste naquilo que o signo está apto a produzir numa mente interpretadora e o interpretante dinâmico é aquilo que o signo efetivamente produz em cada mente singular.
Ou seja, um signo é sempre parte de um processo contínuo de interpretação, onde novos signos podem surgir das interpretações anteriores. Para Peirce, a Terceiridade é a base desse processo. Perceber algo já é interpretar: entre a consciência e o fenômeno há sempre um pensamento. A consciência não acessa diretamente a realidade, a traduz, representando-a simbolicamente.
O que é um signo?
Na semiótica peirceana, um signo é qualquer coisa que esteja no lugar de outra para alguém, sob algum aspecto ou capacidade. A palavra casa, o desenho de uma casa e uma maquete de uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, mas a substituem dentro da natureza própria de cada um deles, para que possamos interpretar aquele objeto.
PARA ENTENDER MELHOR ESSA RELAÇÃO, CONFIRA ESSE VÍDEO. PARA SABER MAIS SOBRE A SEMIÓTICA DE PEIRCE VEJA ESSA PLAYLIST DE VÍDEOS.
Classificação dos signos
Seguindo a sua regra triádica, Peirce também realizou classificações dos signos. Como nesse produto estamos abordando essencialmente à questão das imagens, vamos focar nas três principais que estão baseadas em como os signos se relacionam com seus objetos:
Está relacionado ao signo que aparece como simples qualidade, que não representa nada efetivamente, somente formas e sentimentos, no nível da primeiridade. É sempre uma simples possibilidade, apta a excitar nosso sentido. Assim, têm alto poder de sugestão, de ser um substituto de qualquer coisa que se assemelhe, produzindo em nossa mente relações de comparação. Por exemplo, quando contemplamos as formas das nuvens e, de repente, passamos a comparar aquelas formas com imagens de animais. Aquelas formas, de fato, não representam aqueles animais. Quando representam são chamados de hipoícones, quando a qualidade de sua aparência é semelhante à qualidade da aparência do objeto que representa: a fotografia ou a pintura de um animal.

Adaptado de Santaella (1983)
Os signos permitem que compreendamos, transformemos e organizemos o mundo. A riqueza da semiótica peirceana está em sua capacidade de descrever desde os processos mais simples de percepção até os mais complexos sistemas culturais, através de conceitos que nos permitem descrever, analisar e interpretar linguagens. São instrumentos, lentes para uma nova forma de ler o mundo – como linguagem, como interpretação, como construção de sentido.
Desse modo, o que a Semiótica peirceana apresenta são as fundações formais para o desenvolvimento de muitas semióticas especiais: semiótica da linguagem sonora, da linguagem visual, da linguagem midiática, da linguagem cinematográfica... Essas semióticas especiais, têm por função analisar as características peculiares de cada campo, as práticas de aplicação, as leituras dos diversos processos e produtos: um poema, uma música, um discurso político, um filme...
Então, como podemos aplicar a Semiótica na análise de filmes?
Como vimos, existe um debate em torno da Linguagem Cinematográfica nas teorias do cinema e a Semiótica também trouxe suas contribuições para essa discussão. Um dos primeiros e mais conhecidos teóricos a fazer isso foi o francês Christian Metz, aplicando os conceitos da semiótica saussureana para explicar a significação nos filmes.
Metz parte da premissa de que os filmes são um sistema de significação, ou seja, um meio estruturado por signos que produzem sentido. No entanto, o cinema não é uma linguagem como o idioma falado, pois opera de forma diferente das palavras. O que lhe confere sentido é a montagem. A narrativa cinematográfica é, portanto, uma forma de linguagem que depende da construção visual e sonora, que o espectador aprende a decodificar através de convenções e experiências.
Para entender melhor o pensamento de Metz assista esse vídeo.
*O vídeo está em inglês. Se precisar, você pode ativar as legendas automáticas.
As contribuições de Metz para os estudos de uma semiologia do Cinema, fornecendo um instrumental para compreender os mecanismos internos de uma possível linguagem cinematográfica, foram importantes para pensar a significação nos filmes. No entanto, do ponto de vista semiótico, o pensamento de Peirce também oferece outro prisma para olharmos de forma mais ampla os signos da linguagem cinematográfica. A noção triádica de Peirce – signo, objeto e interpretante – permite observar que qualquer elemento visual ou sonoro dentro do filme pode funcionar como signo, permitindo também uma análise mais granular para entender as significações de uma obra cinematográfica.






Nesse sentido, também podem ser analisados seguindo a tipologia peirceana. Um close-up no rosto do ator que expressa tristeza ou uma trilha sonora mais grave que expressa tensão, fazem emergir a característica icônica, através da emoção. Muitos elementos podem funcionar narrativamente como índices dentro do universo do filme, como um objeto que está ligado a determinado personagem aparecendo em uma cena para indicar sua presença. Igualmente, esses elementos (cores, formas, objetos, sons etc.) podem ser observados em seu nível simbólico, como o vermelho que pode indicar paixão ou violência.
A visão semiótica dos signos fílmicos, aliada ao entendimento das convenções cinematográficas, pode contribuir muito para uma compreensão mais ampla, não somente das narrativas nos filmes, mas também para uma leitura mais profunda das significações que emergem daquela obra.
Os signos em um filme
Cada escolha narrativa de um filme – a composição dos planos, o uso do som, os tipos de interpretação, a montagem – participa da produção de sentido daquela obra e pode ser lida pela semiótica da linguagem cinematográfica, mas também por outras semióticas, como a semiótica da linguagem visual.
Como afirma Dondis (1997), existe uma sintaxe visual, linhas gerais de elementos e técnicas dessa linguagem que se combinam para formar composições dotadas de sentido. Como base nos processos de percepção humana, a organização e a forma desses elementos no campo visual têm funções comunicacionais.
Assim, o Cinema como arte visual também empresta esses conceitos de outras áreas como o design, a pintura e a fotografia, para compor seus planos. Podemos perceber isso na forma como enquadramento, luz, cor e movimento tem função narrativa nos planos para evocar sentimentos e produzir sentidos.
Quando analisamos um filme por meio da Semiótica, estamos analisando como os diversos elementos da linguagem cinematográfica (plano, movimento, montagem etc.) realizam suas significações por meio dos signos visuais (gestos, objetos, cores), dos signos sonoros (música, silêncio, ruídos) e dos signos linguísticos (diálogos, textos na tela).
No entanto, é necessário perceber como a junção desses signos cria efeitos de sentido para entendermos a obra como um todo. Alinhada com a ideia de Peirce, de que signos não agem isoladamente, mas em sistemas, produzindo sentido em rede, a análise fílmica só adquire valor completo dentro da totalidade da narrativa. Por isso a centralidade da montagem para a narrativa cinematográfica.
Para Christian Metz, por exemplo, a montagem desempenha um papel crucial no processo de significação cinematográfica. Ela é o mecanismo que permite ao Cinema estruturar o tempo e o espaço narrativos, criando relações de causa e efeito. Por meio da montagem, o espectador é conduzido a interpretar as sequências de forma lógica ou emocional.
Nesse sentido, a montagem seria uma forma de Terceiridade, pois ela organiza os elementos em uma estrutura lógica e temporal que cria novos significados, algo que vai além da presença icônica das imagens isoladas.
Podemos ver esse sentido bem exemplificado na montagem de Eisenstein na famosa cena da escadaria de Odessa, em “O Encouraçado Potemkin” (1925). O rosto da mãe gritando, a escadaria cheia de soldados, o carrinho de bebê. Cada plano isolado é icônico, mas é na montagem que se cria o sentido na mente do espectador, usando a justaposição de imagens para produzir efeitos emocionais e ideológicos.
Os significados em um filme
Portanto, um ponto essencial para abordar os significados de um filme está no papel ativo do espectador. Ou seja, como propõe Peirce, o sentido de um signo só se realiza em um interpretante – o efeito produzido na mente de alguém. Nesse sentido, Bordwell e Thompson (2013) elencam os possíveis significados de um filme conforme a maneira com que o espectador organiza na sua mente os elementos narrativos apresentados na obra.
Dois entre esses processos de significação, são especialmente interessantes de observarmos sobre o prisma da semiótica peirceana. O significado implícito é um tipo de significação que corresponde ao interpretante dinâmico em Peirce: é o efeito interpretativo que não está fixado, mas é construído pelo espectador a partir da relação entre os signos do filme e suas próprias experiências.
Por isso, dizemos que a experiência cinematográfica não se dá apenas pela forma pura do filme, pela decodificação de códigos fílmicos, mas nas lacunas da interação do espectador com o que é visto, que são preenchidas pela experiência cultural, pessoal, emocional e estética. Portanto, as interpretações podem ser múltiplas e diferentes para cada pessoa.
Já o significado sintomático diz respeito às ideologias que emergem de um filme – os discursos latentes de classe, gênero, etnia etc. Como afirma Santaella (1983), o processo de significação só não é infinito, porque nosso pensamento, em maior ou menor grau, está inexoravelmente preso aos limites da ideologia, ou seja, das representações de mundo que nossa historicidade nos impõe.
Assim, a semiótica também nos ajuda a perceber como o Cinema participa da construção social de signos culturais. Estereótipos e valores são frequentemente reforçados nos filmes, sobretudo nos produtos da Indústria Cultural. Olhar para esses elementos pela semiótica é uma forma de refletir criticamente sobre esses valores que circulam nas imagens e narrativas que consumimos.
Esse sentido reforça a importância do letramento audiovisual – pensado de forma ampla, para além da linguagem, numa abordagem de educação midiática – para realizar uma leitura crítica e mais profunda das obras cinematográficas, entendendo os filmes como uma linguagem complexa e multifacetada, como arte e experiência simbólica e também como produtos culturais.











