Qual a relação com a EPT?
O trabalho de educação midiática e letramento audiovisual não é tarefa simples de ser inserida no cotidiano escolar, pois demanda além da formação dos formadores, planejamento e mudanças de paradigmas e rotinas. Considerando as dificuldades estruturais e políticas que envolvem a educação brasileira, a efetivação de propostas nesse sentido se torna mais desafiadora. Contudo, os Institutos Federais (IFs) podem ser vislumbrados como espaços de educação pública onde existem meios e potencialidades para que esse ideal se concretize de maneira mais orgânica. Os IFs são escolas de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), com autonomia institucional e uma perspectiva educacional que podem possibilitar a efetivação dessas ações, sobretudo nos seus cursos de Ensino Médio Integrado (EMI).
Essa perspectiva educacional está preconizada nos documentos norteadores dessas instituições. No caso do IFC, temos as Diretrizes para a Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Médio, de 2019. No âmbito do IFSC, temos as novas Diretrizes Curriculares para os Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio, que trazem logo no seu Artigo 2º os princípios da concepção de EMI do IFSC, sendo o primeiro deles a formação humana integral.
Sob essa perspectiva, a EPT é orientada não apenas para o ensino de uma profissão, mas visando desenvolver a cidadania e uma postura reflexiva, de pensamento crítico, para a emancipação dos indivíduos, instrumentalizando-os para uma inserção produtiva na sociedade com a formação necessária para também transformá-la.
O que é a formação humana integral?
Nos IFs, essa formação visa articular os conhecimentos da formação geral e da formação profissional, para um desenvolvimento de todas as dimensões humanas, com o trabalho como princípio educativo, integrado à ciência, tecnologia e cultura como dimensões indissociáveis de uma formação com vistas à compreensão da totalidade concreta da realidade.
A formação humana integral nos IFs
Como bem apresenta João Carlos Cichaczewski em seu livro Uma história a ser feita (2023), os IFs são a materialização de uma política pública vinculada a um projeto societário que tem suas raízes nas lutas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora nos anos 1970 e 1980.
Além disso, o autor demonstra que os ideais dessas lutas também se expressaram nas discussões do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) no final os anos 1980 e na produção de um documento para a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que começou a ser debatida logo após a aprovação da Constituição Federal de 1988.
Conforme descreve Ciavatta (2012), esse documento teve intensa participação da comunidade acadêmica e buscava assegurar uma formação básica que superasse a dualidade entre cultura geral e cultura técnica, assumindo o ideário de politecnia. Esse conceito, tributário da perspectiva educacional socialista e de pensadores ligados a ela, resgatava o princípio da formação humana em sua totalidade, em termos epistemológicos e pedagógicos.
Apesar de derrotada no parlamento por uma proposta mais alinhada aos ideais neoliberais que vigoravam na política brasileira nos anos 1990, essa perspectiva se manteve viva no debate educacional nos anos seguintes. Desse modo, é essa mesma perspectiva que vai ser resgatada nas políticas para a criação dos IFs e da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), em 2008.
Dica de Leitura

Nessa obra, que também é um produto gerado a partir de pesquisa realizada no PROFEPT, o autor faz um percurso histórico, com base em análise de documentos oficiais e de acontecimentos no campo político e social, para identificar as determinantes que estruturaram a constituição dos Institutos Federais, assim como os fundamentos sobre os quais se edifica a proposta político-pedagógica dessas instituições. Uma leitura que vale muito para todos os servidores dessas instituições conhecerem melhor o projeto do qual fazem parte.
O documento base da Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio (Brasil/MEC, 2007), por exemplo, no seu capítulo “Concepções e Princípios”, afirma esse sentido. Recorrendo ao pensamento de Maria Ciavatta, o texto defende uma formação humana completa para “[...] a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, nesse sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos” (Ciavatta, 2012, p. 85).
Sob essa perspectiva, o EMI nos IFs não se trata apenas de uma modalidade que possibilita ao discente cursar o ensino médio integrado a um curso técnico, viabilizando a formação básica e a profissional acontecerem numa mesma instituição, num mesmo curso, com currículo e matrículas únicas. Para além disso, o conceito carrega em seus sentidos a luta por um processo formativo integral, que supere a histórica dualidade educacional baseada no modo de produção capitalista, da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, proporcionando a emancipação da classe trabalhadora.
Apesar dos desafios estruturais e das disputas políticas e ideológicas que se colocam na efetivação dessa proposta educacional desde seus primeiros anos de gestação, a atualidade dessas premissas ao longo dos anos pode ser observada também nos documentos oficiais da RFEPCT.
Por exemplo, o documento Diretrizes indutoras para a oferta de Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, publicado em 2018 pelo Fórum de Dirigentes de Ensino (FDE) do CONIF – Conselho Nacional das Instituições da RFEPCT, reforça a formação humana integral como base para a proposta de educação realizada nos IFs.
3 Fundamentos e Base Legal dos Cursos Técnicos Integrados
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Portanto, para o pleno desenvolvimento do sujeito, que implica formação para a cidadania e qualificação para o trabalho, torna-se imprescindível a articulação entre educação básica e profissional. Neste sentido, a educação precisa libertar-se da perspectiva histórica imposta pelo mercado e pelos segmentos produtivos de foco unicamente na formação para o trabalho e buscar a formação omnilateral, que visa ao desenvolvimento de todas as potencialidades humanas.
Dessa forma, o compromisso da RFEPCT deve ser com a formação crítica, humanizada e emancipadora, que proporcione experiências por meio das quais seja possível despertar o senso crítico, elevando o sujeito a patamares de compreensão capazes de ampliar seu nível de participação na esfera social, sem negligenciar a relação do homem com as questões de socialização, com as tecnologias, com os desafios ambientais e com a totalidade do complexo mundo do trabalho.
(FDE/CONIF, 2018, p. 11)
E qual a relação com a educação midiática e o letramento audiovisual?
O sentido de formação humana integral nos Institutos Federais evidencia o EMI como espaço possível e potente para iniciativas de educação midiática, como a proposta de letramento audiovisual apresentada aqui. No contexto da contemporaneidade, em uma sociedade pautada pelas imagens audiovisuais e por sua espetacularização, esse letramento cumpre um papel fundamental.
Assim, este produto busca em última instância, alinhado à essa perspectiva educacional e através da prática docente, proporcionar aos estudantes conhecimentos que colaborem com a construção do pensamento crítico em relação às obras audiovisuais, contribuindo para a formação de sujeitos amplamente preparados para compreender e refletir sobre a sociedade na qual estão inseridos.
Além disso, uma característica da proposta dos IFs relevante para este produto é a articulação com a cultura como um dos eixos estruturantes do processo de formação humana integral. Nessa perspectiva educacional, o trabalho é entendido como toda ação transformadora consciente do ser humano para produzir sua própria existência. Nesse sentido, como afirmam Ramos e Moratori (2017), a cultura seria o conjunto de formas e resultados dessas ações sobre o mundo, sejam elas materiais ou simbólicas.
Assim, sendo o conhecimento humano produto de necessidades e práticas do ser social, reconhecer a arte – e nesse contexto o Cinema – como ação transformadora humana obtida pelo trabalho, é caracterizá-la como parte da cultura. Portanto, abordar o Cinema na perspectiva da educação midiática, também está alinhado à essa concepção pedagógica que visa proporcionar a compreensão dos conhecimentos para transformação das condições naturais da vida e para ampliação das capacidades humanas.
Uma formação integrada, portanto, não somente possibilita o acesso a conhecimentos científicos, mas também promove a reflexão crítica sobre os padrões culturais que se constituem normas de conduta de um grupo social, assim como a apropriação de referências e tendências estéticas que se manifestam em tempos e espaços históricos, os quais expressam concepções, problemas, crises e potenciais de uma sociedade, que se vê traduzida ou questionada nas manifestações e obras artísticas.
(Brasil/MEC, 2007, p 45)
Para ter garantido o acesso aos conhecimentos socialmente construídos após o início do século XX, é impossível não considerarmos o que foi realizado no âmbito do Cinema. Ademais, se tornou imperativo na sociedade contemporânea a necessidade sociocultural de se relacionar com as mídias audiovisuais e interpretar suas significações. Assim, pensar e propor um lugar de crítica e discussão das imagens audiovisuais no EMI busca também garantir um processo de formação da emancipação humana e transformação social.